Restrição ao uso de dispositivos móveis reacende debates sobre desigualdade, pedagogia e o papel da tecnologia na formação cidadã

A proibição do uso de celulares nas escolas brasileiras, sancionada recentemente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, representa um marco na busca por maior atenção dos estudantes e socialização no ambiente escolar. Entretanto, a nova legislação, que reflete um movimento global, expõe fragilidades estruturais do sistema educacional e levanta questionamentos sobre a integração da tecnologia na educação contemporânea.
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A restrição aos celulares nas escolas não é exclusividade brasileira. França, Espanha, Dinamarca e outros países europeus já adotaram legislações semelhantes, respaldadas por estudos que indicam o impacto negativo das telas na concentração e no bem-estar psicológico dos jovens. No entanto, diferentemente dessas nações, o Brasil enfrenta peculiaridades marcadas por desigualdades socioeconômicas, falta de infraestrutura e desafios na formação docente.
Renan Ferreirinha, secretário de Educação do Rio de Janeiro, destaca que a proibição implementada no município já trouxe resultados positivos: “Os recreios voltaram a ter mais interação entre os alunos, resgatando a essência da convivência escolar”. Mas a aplicação da lei esbarra em questões práticas, como a falta de segurança para armazenar os aparelhos, salas superlotadas e o vício generalizado nas telas, especialmente entre jovens.
Aqui, o contexto histórico é determinante. A educação brasileira, historicamente subfinanciada, sempre esteve marcada por disparidades. Em regiões vulneráveis, onde o celular muitas vezes é a única tecnologia acessível aos estudantes, a proibição pode aprofundar desigualdades. Hugo Silva, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), questiona: “Como garantir que a proibição não limite ainda mais o acesso à tecnologia de estudantes de escolas públicas?”.
A tecnologia: vilã ou aliada na educação?
A proibição dos celulares toca em uma contradição central da educação contemporânea: ao mesmo tempo em que os dispositivos são vistos como uma distração, eles também representam ferramentas poderosas de aprendizado. Gilberto Lacerda Santos, professor da Universidade de Brasília, aponta que a medida reflete uma falha coletiva em integrar a tecnologia ao ensino: “É o reconhecimento de que não conseguimos educar nossos jovens para usar as tecnologias de forma ética e produtiva”.
Essa tensão evidencia um dilema global. Em sociedades cada vez mais digitais, educadores enfrentam o desafio de equilibrar o uso consciente da tecnologia com a necessidade de manter o foco dos alunos. Entretanto, no Brasil, a falta de formação específica para professores e a ausência de infraestrutura tornam essa tarefa hercúlea. O problema não está no celular em si, mas na incapacidade de transformar esse recurso em aliado pedagógico.
Além disso, o impacto das telas na saúde mental não pode ser ignorado. Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que o uso excessivo de dispositivos eletrônicos pode estar associado a sintomas de ansiedade, depressão e déficit de atenção, especialmente entre jovens. Por isso, o controle do uso de celulares no ambiente escolar é mais do que uma questão de disciplina; é uma tentativa de mitigar riscos à saúde psíquica.
Desafios estruturais e pedagógicos
A implementação da nova lei expõe um cenário já conhecido: escolas públicas enfrentam desafios estruturais que vão além da tecnologia. Diogo de Andrade, professor e representante do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro, relata que salas lotadas dificultam o controle do uso dos celulares: “Faltam condições materiais e humanas para que a lei seja efetiva. Não adianta proibir se o professor não consegue monitorar uma turma superlotada”.
Outro ponto crucial é a formação dos professores. A ausência de capacitação específica para integrar tecnologias ao ensino é um reflexo do desprezo histórico pelo papel do educador no Brasil. Como afirma Santos, “o professor é o elo essencial entre tecnologia e aprendizado significativo. Sem formação e remuneração adequadas, ele não tem condições de exercer esse papel”.
O impacto da proibição também recai sobre a dinâmica das aulas. Para estudantes, como Hugo Silva, não basta proibir os celulares: “A escola precisa ser mais atrativa. Se a aula for interessante, mais interessante que um TikTok, o celular será abandonado”. Essa afirmação aponta para um problema crônico do sistema educacional brasileiro: aulas descontextualizadas, desmotivadoras e alheias à realidade dos alunos.
Um debate sobre o papel da educação
O debate sobre a proibição dos celulares vai além das salas de aula. Ele levanta questões filosóficas sobre o propósito da educação no século XXI. A escola deve preparar os jovens para um mundo conectado ou protegê-los dos riscos associados às tecnologias? Essas perguntas remetem a teorias de filósofos como Michel Foucault, que analisou como as instituições moldam comportamentos, e Paulo Freire, que defendeu uma educação libertadora e contextualizada.
Freire, em especial, oferece uma perspectiva relevante: a proibição por si só não educa. Para ele, é necessário transformar o espaço escolar em um ambiente de diálogo e aprendizado crítico. Nesse sentido, a nova lei pode ser vista como um primeiro passo, mas insuficiente sem políticas públicas que abordem questões estruturais, como investimento em infraestrutura, formação docente e desenvolvimento de conteúdos pedagógicos inovadores.
Entre a proibição e a transformação
A nova lei de proibição dos celulares nas escolas brasileiras simboliza tanto um avanço quanto uma oportunidade perdida. Por um lado, ela reflete a necessidade urgente de enfrentar os impactos das telas na socialização e no aprendizado. Por outro, evidencia as limitações de um sistema educacional que ainda não conseguiu integrar a tecnologia de forma significativa.
Se o Brasil deseja realmente transformar a educação, será necessário ir além da proibição. Como apontam especialistas, é fundamental investir na formação de professores, na infraestrutura escolar e na criação de uma pedagogia que dialogue com as realidades digitais. Caso contrário, a lei corre o risco de se tornar mais uma medida inócua, desconectada das demandas do século XXI.
Como sociedade, devemos refletir: estamos dispostos a transformar as escolas em espaços de inovação e diálogo, ou continuaremos a implementar soluções paliativas para problemas estruturais? O futuro da educação brasileira depende da resposta a essa pergunta.
Com informações de: SEMANA ON