Entre a negligência histórica e o potencial de inovação, o país busca superar o atraso na destinação do lixo

Foto: Divulgação / ANCAT
Em 2023, o Brasil produziu 81 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos (RSU), o suficiente para encher dois mil estádios do Maracanã. Apesar do volume impressionante, os números revelam um sistema de gestão profundamente desigual e insustentável: apenas 58,5% dos resíduos foram destinados a aterros sanitários legalizados, enquanto 41,5% acabaram em lixões, aterros clandestinos e, em muitos casos, poluindo rios, terrenos baldios e áreas urbanas.
Clique para seguir a SEMANA ON no Instagram, no Facebook e no Whatsapp
A baixa taxa de reciclagem, de apenas 8,3%, aponta para uma fragilidade estrutural que vai além do descaso: ela denuncia a ausência de políticas públicas efetivas, desigualdades regionais e uma cultura de consumo que ainda não compreende plenamente a responsabilidade ambiental.
Por trás desses números, está uma complexa interseção de fatores históricos, econômicos e sociais que colocam o Brasil em um paradoxo: o país é um dos maiores produtores de lixo plástico do mundo, mas recicla menos de 1% desse material. Resolver essa crise exige uma abordagem sistêmica, que articule avanços tecnológicos, conscientização coletiva e um compromisso político mais robusto.
O legado histórico e as desigualdades regionais
O manejo inadequado de resíduos no Brasil tem raízes em um histórico de urbanização acelerada e desigual. A explosão populacional nas grandes cidades, especialmente nas décadas de 1950 e 1960, não foi acompanhada por investimentos proporcionais em infraestrutura sanitária. Essa negligência perpetuou um modelo de descarte inadequado, que hoje atinge principalmente regiões historicamente desfavorecidas, como o Norte e o Nordeste.
Dados da Abrema revelam disparidades marcantes: enquanto o Sudeste coleta quase 99% dos resíduos produzidos, no Norte essa taxa não chega a 83%. Municípios menores enfrentam dificuldades em implantar aterros sanitários e sistemas de coleta seletiva devido à falta de recursos e apoio técnico. O caso de Envira, no Amazonas, é emblemático: um lixão irregular ameaça terras indígenas e reflete o impacto desproporcional do problema nas comunidades mais vulneráveis.
Como destacou o Ministério do Meio Ambiente, a ausência de consórcios entre municípios para rateio de custos e a inexistência de taxas de resíduos sólidos dificultam a criação de soluções de longo prazo. Sem medidas estruturais, os lixões, que já deveriam ter sido erradicados em 2024 pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), permanecem como um retrato do descaso.
Catadores: o elo invisível da economia circular
Apesar da ausência de infraestrutura pública adequada, o Brasil possui um trunfo: os catadores. Esses trabalhadores, responsáveis por quase 90% do material reciclado no país, são essenciais para a economia circular. Entretanto, a maior parte das cooperativas opera de forma precária, com baixa remuneração e sem reconhecimento formal.
O Ipea estima que há potencial para aumentar a taxa de reciclagem em até 25% com investimentos na formalização e remuneração desses trabalhadores. Além de promover justiça social, essa medida reduziria a demanda por recursos naturais e a criação de novos aterros, como destaca Carlos Alberto Moraes, da Aliança Resíduo Zero Brasil.
Reciclagem e o papel da sociedade
A baixa reciclagem no Brasil reflete também uma cultura de consumo que prioriza conveniência sobre sustentabilidade. Campanhas educativas são raras, e a coleta seletiva ainda é inexistente em grande parte dos municípios.
Bruno Reis, biólogo especialista em licenciamento ambiental, reforça a necessidade de criar ecopontos e ampliar a oferta de coleta seletiva. “Educar a população é fundamental. Pequenas mudanças, como o uso de ecobags ou a separação adequada do lixo, podem ter um impacto significativo”, explica.
Em países como Alemanha e Suécia, a reciclagem alcança taxas superiores a 60% devido à integração de políticas públicas, incentivos financeiros e uma cultura ambiental fortalecida. O Brasil, embora distante desse patamar, pode aprender com esses exemplos e adaptar soluções às suas especificidades.
Resíduos orgânicos: uma oportunidade energética
Quase metade dos RSU brasileiros são resíduos orgânicos, que têm potencial para gerar biometano ou biogás. Esse combustível limpo não só reduz as emissões de gases de efeito estufa como também pode atender parte da demanda nacional de gás natural, hoje estimada em 58,4 milhões de Nm³/dia.
Contudo, apenas seis plantas de biometano operam no país, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). “Com a infraestrutura existente e novos investimentos, poderíamos atender até 5% da demanda atual de gás natural, uma contribuição significativa para a descarbonização da matriz energética”, explica Pedro Maranhão, presidente da Abrema.
O processo de produção de biometano é um exemplo de como a tecnologia pode transformar o lixo em recurso. Após a separação dos materiais recicláveis, os resíduos orgânicos são encapsulados em aterros sanitários, onde se decompõem e liberam biogás. Esse gás é então purificado e transformado em biometano.
A ampliação desse modelo exige investimentos em infraestrutura e políticas que incentivem sua adoção, especialmente em cidades maiores, onde o volume de resíduos é mais significativo.
PNRS: uma política promissora, mas negligenciada
Instituída em 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) estabeleceu diretrizes fundamentais para a gestão do lixo no Brasil, como a erradicação de lixões, incentivo à reciclagem e destinação adequada dos resíduos. No entanto, mais de uma década depois, muitos de seus objetivos permanecem distantes.
Especialistas apontam a falta de financiamento público e o baixo engajamento dos municípios como principais entraves. A aprovação de um projeto de lei pelo Senado em 2023, proibindo a importação de resíduos sólidos, é um passo importante, mas insuficiente diante da complexidade do problema.
O lixo como oportunidade
A crise do lixo no Brasil não é apenas um problema ambiental; é um reflexo de desigualdades históricas, falhas de gestão pública e uma sociedade que ainda não prioriza a sustentabilidade. Mas ela também é uma oportunidade.
Com investimentos em tecnologia, valorização dos catadores, educação ambiental e implementação efetiva da PNRS, o Brasil pode transformar o lixo em um ativo econômico e ambiental. Como afirmou Pedro Maranhão, “não há solução mágica, mas a união de esforços entre governo, sociedade e iniciativa privada pode mudar essa realidade”.
No ritmo atual, os estádios do lixo continuarão a crescer, mas o potencial para reverter essa trajetória é real. A questão é: estamos prontos para transformar resíduos em recursos e repensar nossa relação com o meio ambiente?
Com informações de: SEMANA ON