Decisão de reinstalar o sistema de estacionamento pago expõe contradições entre a gestão pública e o direito à cidade, agravando desigualdades

A retomada do sistema de parquímetros em Campo Grande, sancionada pela prefeita Adriane Lopes e prevista para 2025, representa muito mais do que uma reorganização das vagas de estacionamento no centro da cidade. É um retrato das escolhas administrativas que priorizam a arrecadação financeira em detrimento do bem-estar social, expondo as tensões entre modernização urbana e o acesso democrático ao espaço público.
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A proposta, que promete ampliar de 2.500 para 6.200 vagas rotativas e eleva o custo por hora de R$ 2,50 para R$ 4,40, foi justificada como uma resposta à desordem no estacionamento desde 2022, quando a concessionária FlexPark deixou o serviço. Entretanto, a polêmica cresce na medida em que o projeto explicita os limites da gestão pública em enfrentar desafios estruturais de mobilidade urbana, ao mesmo tempo em que escancara uma lógica excludente, que transforma direitos em mercadoria.
Parquímetros e a privatização do espaço público
O estacionamento rotativo pago não é novidade no Brasil ou no mundo. Desde sua implantação inicial em Oklahoma City, nos Estados Unidos, em 1935, os parquímetros foram concebidos como uma ferramenta para gerenciar a crescente pressão sobre o espaço urbano, garantindo rotatividade no comércio local. No entanto, sua adoção em cidades desiguais, como Campo Grande, carrega implicações que vão além do trânsito.
O sociólogo Henri Lefebvre, em seu conceito de “direito à cidade”, alerta para o risco de submeter os espaços públicos à lógica do mercado. Campo Grande, ao elevar o custo para estacionar no centro em 60%, desconsidera o impacto direto sobre trabalhadores de baixa renda, pequenos comerciantes e consumidores que dependem do centro para atividades diárias. Em um contexto de inflação e precarização do trabalho, a medida reforça a exclusão social e privilegia aqueles que podem arcar com o ônus financeiro.
Essa privatização do espaço público, disfarçada de solução urbana, levanta uma questão central: quem realmente se beneficia? Enquanto o discurso oficial afirma que parte da arrecadação será destinada ao transporte público, a ausência de garantias e transparência no uso dos recursos gera desconfiança. A história recente brasileira é repleta de promessas não cumpridas sobre a aplicação de fundos públicos, ampliando o ceticismo popular.
O custo da ausência de segurança e infraestrutura
Os críticos do projeto apontam que, além do custo elevado, o sistema não oferece contrapartidas básicas, como segurança para os veículos estacionados. “Vai pagar para quê? Não tem motivo para cobrar por isso”, questiona o operador de máquinas Marcos Roberto Dias, ecoando uma preocupação legítima. A cobrança pelo estacionamento público, em sua essência, deveria ser acompanhada de investimentos concretos na infraestrutura e segurança urbana – algo que, até o momento, não consta nas promessas da administração municipal.
A insegurança não é um problema isolado, mas sintomático de um modelo de gestão que frequentemente ignora os desafios reais enfrentados pela população. É a manifestação prática do que David Harvey chama de “acumulação por desapropriação”, em que o espaço urbano é moldado por interesses econômicos em detrimento das necessidades sociais.
O papel da prefeita e as contradições da política local
A prefeita Adriane Lopes, ao sancionar a concessão por 12 anos, coloca sua administração no centro de um debate sobre prioridades. Enquanto o município alega que os recursos gerados pelo sistema de parquímetros serão revertidos em melhorias no transporte público, não há um plano claro sobre como esses investimentos serão executados. A história de Campo Grande com a FlexPark, marcada por atrasos nos repasses e prejuízos ao município, não inspira confiança em uma gestão que agora promete resolver problemas antigos com a mesma fórmula que fracassou no passado.
Além disso, a aprovação do projeto na Câmara Municipal, com 21 votos favoráveis, revela o papel ambíguo do Legislativo local, frequentemente alinhado às prioridades do Executivo. A retirada e readequação do projeto para atender às demandas de vereadores demonstra mais um jogo político do que um compromisso com as necessidades da população.
Mobilidade urbana: um problema mais profundo
A retomada dos parquímetros evidencia um problema maior e mais negligenciado: a falta de políticas abrangentes de mobilidade urbana. Enquanto países europeus como Holanda e Alemanha avançam na promoção de transportes sustentáveis, como bicicletas e transporte público integrado, cidades brasileiras permanecem reféns de soluções paliativas que beneficiam poucos e ignoram muitos.
A aplicação do estacionamento rotativo deveria ser parte de um plano mais amplo, que considerasse alternativas como estacionamentos gratuitos por tempo limitado, estímulo ao uso do transporte coletivo e melhorias na infraestrutura de ciclovias. Sem essas ações complementares, o sistema de parquímetros apenas transfere o problema para os consumidores e perpetua o ciclo de exclusão.
O direito à cidade e o futuro de Campo Grande
Campo Grande enfrenta um momento crucial de sua história urbana. A decisão de reinstalar os parquímetros não é apenas uma questão de mobilidade, mas um símbolo das escolhas que definirão o futuro da cidade. Optar por um modelo de gestão excludente e pouco transparente é caminhar na contramão dos princípios democráticos que deveriam nortear a administração pública.
Em última análise, o espaço urbano pertence à coletividade. Transformá-lo em fonte de lucro privado sem oferecer contrapartidas claras não é apenas uma injustiça, mas uma traição aos valores de equidade e inclusão que deveriam guiar a política local. A prefeita Adriane Lopes e os vereadores que apoiaram o projeto têm o dever de prestar contas à população, garantindo que o direito à cidade seja preservado – e não vendido ao maior lance.
A volta dos parquímetros em Campo Grande não é um simples ajuste técnico, mas um reflexo das contradições entre a gestão pública e o interesse coletivo. É preciso resistir à lógica que transforma a cidade em mercadoria e defender políticas que coloquem as pessoas, e não os lucros, no centro das decisões. Como afirmou o geógrafo Milton Santos, “a cidade é o lugar onde se concretizam os direitos dos cidadãos” – e não o palco para a sua exclusão.
Com informações de: SEMANA ON